Logo no início de 2020 Nunca Mais (Death to 2020), o jornalista vivido por Samuel L. Jackson questiona, sobre a intenção dos realizadores de fazerem uma retrospectiva de 2020: "por que vocês querem fazer isso?".
Em uma entrevista concedida em maio, o britânico Charlie Brooker, responsável pela produção da série Black Mirror, havia dito que não estava produzindo nenhum episódio porque não sabia se haveria "estômago para histórias sobre sociedades desmoronando". "Estou ansioso para revisitar meu conjunto de habilidades cômicas, então tenho escrito roteiros com o objetivo de me fazer rir."
O resultado dessa intenção de Brooker é o falso documentário que entrou no ar pela Netflix neste domingo. Desnecessário dizer que o ano que termina na próxima sexta-feira foi tão atípico que tornou palpáveis narrativas que pertenciam à esfera da ficção. Não só pela pandemia que atingiu o mundo de formas distintas, mas por acontecimentos como a corrida eleitoral nos Estados Unidos e o próprio comportamento irresponsável de líderes mundiais em relação à covid-19.
Nesse contexto, o filme faz com que lembremos de fatos graves, ocorridos em um período pré-pandemia que parecem ter acontecido em outra vida, como a série de incêndios na Austrália iniciada em janeiro, que matou ou desabrigou 3 bilhões de animais no país. Ou o assassinato, por parte do governo estadunidense, do general iraniano Qasem Suleimani, elevando a tensão geopolítica a um nível elevado e trazendo ao mundo o medo de um conflito de terríveis proporções.
Mas é a pandemia quem domina o falso documentário. Não apenas pelo que causou, mas pela reação de governos a ela. E aí, obviamente, entram como alvo presidentes que desprezaram a pandemia, como Donald Trump, alvo principal do filme, e Boris Johnson. O brasileiro Jair Bolsonaro também aparece rapidamente como exemplo, ao lado do presidente dos EUA, de líder que não toma cuidados para se prevenir contra o contágio pela covid-19.
Entre personagens reais, surgem outros ficcionais, mas nem tanto, como o mega-empresário e o influenciador digital que querem lucrar com a pandemia, fingindo "se importar", até o historiador que não consegue distinguir ficção e realidade.
Aliás, essa falta de distinção, representada pelo negacionismo encarnado em uma "cidadã comum" e, na sua forma mais perversa na congressista vivida por Lisa Kudrow, é um dos elementos centrais da obra, já que sua dimensão alcançou hoje um status no qual afeta a vida das pessoas mas pode determinar até mesmo sua morte.
2020 Nunca Mais sem o fio da meada
Quase toda retrospectiva jornalística é, na prática, uma colcha de retalhos, e o filme não escapa de ser uma salada. Mas, como obra ficcional, perde força justamente por não dar algum sentido à sequência de fatos.
Talvez o negacionismo e o predomínio das fake news poderiam ser a linha que une os fatos retratados no filme. Afinal, ela está presente não só no enfrentamento da pandemia e nos boatos sobre a vacinação, como também na negação do racismo, tema visitado a partir da explosão dos protestos do Black Lives Matters em nível mundial após o assassinato de George Floyd. e também na mentira como estratégia de luta política, algo que cresce e alimenta o anti-cientificismo.
O filme perde essa oportunidade e os personagens, alguns que parecem fazer pouco sentido no conjunto, também não dão essa costura. Além disso, trata-se essencialmente um filme anglo-saxão, já que centra suas críticas em Trump e Johnson, ignorando tantas outras personalidades da política mundial que se destacaram, positiva (e em especial negativamente) na pandemia.
Como comédia, embora possa suscitar risadas, comete um pecado mortal que já vitimou outros filmes e séries. Muitas das piadas são variações do mesmo tema. Quando aborda as eleições nos Estados Unidos, tema, aliás sobredimensionado, há uma série delas sobre a idade de Joe Biden. Dá vontade de dizer, "ok, entendi que ele é idoso, mais alguma coisa além disso?".
Apesar da intenção de Brooker e do elenco valioso, que consegue dar um tempero ao filme em muitos momentos, o roteiro e mesmo o cenário atual ainda não permitam que se possa olhar para 2020 de uma forma cômica.
2020 Nunca Mais (Death to 2020)
Direção: Charlie Brooker e Al Campbell
Elenco: Samuel L. Jackson, Hugh Grant, Cristin Milioti e Lisa Kudrow
Duração: 110 minutos
Nacionalidade: Estados Unidos
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Disponível na Netflix