sábado, 27 de maio de 2017

Máquina de Guerra (War Machine) - em produção da Netflix, Brad Pitt traz a "empatia impossível" da guerra

Sátira sobre a ocupação dos EUA e da Otan no Afeganistão traz retrato mordaz de uma política de intervenção impossível de dar certo

O filme War Machine, Máquina de Guerra, produção do Netflix do diretor David Michôd, trata de um tema tratado quase à exaustão no cinema norte-americano. A guerra ou as guerras são alvo constante de películas, muitas delas trazendo críticas a posteriori que no calor da dita batalha são sufocadas ou apenas sussurradas, já que toda a engrenagem midiática que lhes dá suporte quase não permite o contraditório. Nem por isso, deixa de ser um filme interessante.

Agora, o campo de batalha é o Afeganistão, invadido pelos EUA em 2001, e o fio condutor da história é um personagem real, o controverso general Stanley McChrystal, comandante das forças dos EUA e da Otan no país, durante parte da gestão Obama. O militar era defensor da teoria da "contra-insurgência", estratégia considerada de sucesso levada a cabo no Iraque por outro militar considerado herói estadunidense, David Petraeus. Em linhas gerais, consiste em combinar equipamentos de alta tecnologia com o uso de força intensiva de tropas em solo, no qual um contingente massivo de soldados passa a conviver com a população local com o objetivo de auxiliar na construção um novo governo, assumindo funções "diplomáticas" (ou colonizadoras) e exercendo um papel político antes reservado somente a civis.

Obviamente que as condições próprias da situação do Afeganistão eram diferentes das do Iraque, e o "sucesso" da ação é mais que questionável, mas Stanley McChrystal era alguém convicto nas suas crenças e, além disso, sem papas na língua. Foi uma reportagem da revista Rolling Stone que acabou decretando sua queda. Obama não gostou nada das declarações do general e de assessores desancando a linha de ação do governo, figuras de sua administração como seu próprio vice-presidente, Joe Biden, e acabou substituindo o comandante justamente por seu mentor, Petraeus.

Como se chega a esse ponto é a história que o filme conta, e isso não é exatamente um spoiler, já que desde o início (e a própria história da ocupação no Afeganistão se encarregou de mostrar), trata-se de uma guerra impossível de ser vencida. No entanto, ninguém contou isso para o general Glen McMahon, vivido por Brad Pitt e que é, na verdade, McChrystal. O diretor australiano explicou que a criação do fictício comandante militar, “que não se parece em nada com o McChrystal real”, se dá porque a obra não foca em “nenhum indivíduo concreto, mas sim sobre um sistema e o particular comportamento dos militares nesse sistema”.


Esse teor de crítica mais ampla permeia o filme inteiro, mas também é difícil despersonalizar a história tendo um protagonista com a força de McMahon. A interpretação de Brad Pitt consegue um equilíbrio perfeito entre a caricatura, que muitas vezes distancia o espectador do personagem, e o homem que poderia ser qualquer pessoa que você conhece. As cenas em que o general corre solitário em seu exercício diário remetem, aliás, a Forrest Gump no jeito de correr do militar e também nas características que poderiam unir ambas as figuras: um alheamento da realidade aliado a uma obstinação que perderia o sentido não fosse a própria ideia fixa.

Embora conte com o apoio irrestrito de uma equipe leal, em sua saga, McMahon tem que convencer suas tropas a exercer um outro tipo de ação, em que a prioridade é evitar perdas civis para que não haja mais insurgentes se aliando aos talibãs e exércitos locais que combatem as forças ocidentais e do governo local. Para executar tal estratégia, precisa convencer seu próprio governo, que sofre com o desgaste de uma guerra que àquela altura, em 2009, já durava nove anos e era contestada pela opinião pública, a enviar mais tropas. Tem também que fazer o mesmo tipo de trabalho com os países-membros da Otan.

Boa parte da narrativa se dá nesse trabalho de convencimento do general, com seus soldados, com representantes diplomáticos, mas nunca em relação a si mesmo. Ele não duvida dos seus métodos, acredita que tudo se trata de uma questão de liderança e do jeito certo de se fazer. Quando questionado, muitas vezes não tem respostas para as críticas que sua missão recebe, mas isso não o abala. Embora tenha um tipo de ação que possa parecer orientada de forma distinta de outras celebrizadas pelas Forças Armadas norte-americanas, seu objetivo é o mesmo: vencer a guerra. A forma como vai conseguir a vitória não tem necessariamente um viés humanitário. É só estratégia.

Uma das cenas mais emblemáticas se dá quando McMahon se encontra pela segunda vez com o presidente afegão, Karzai, vivido pelo sempre ótimo Ben Kingsley. Enquanto o presidente o recebe em uma cama, gripado e assistindo à comédia Debi e Lóid, o general diz precisar que o mandatário exerça sua liderança. Ele, ironicamente, responde que já está fazendo isso: "Estou indisponível. Estou indisponível tanto para você quanto seu próprio presidente". A visita do militar ocorre para pedir uma autorização formal a uma operação que será executada em Kandahar. Novamente, Karzai é sarcástico. "Tem minha autorização, general. Ambos sabemos que eu nunca tive poder para tal. Mas agradeço por ter me convidado para participar do teatro de tudo isso."

O cinismo com que o presidente trata da situação é a evidência de que qualquer exercício de empatia entre um país invasor e um povo dominado, ainda que se use o eufemismo da "parceria" (hoje muito utilizado também em relações entre patrões e empregados), é impossível. Tais alianças se dão em relação a pequenos segmentos abastados, muitas vezes tão alheios à própria realidade como o personagem de Brad Pitt. A narrativa dá pistas disso o tempo todo para o protagonista, que, preso em sua bolha, pessoal e de seu grupo, teima em não ver.

Como relatou o diretor, a história tem como um dos objetivos mostrar que figuras como McMahon são úteis ao sistema, o que vai ficar evidente de forma pouco sutil no final do filme, não sendo, de fato, autônomas em suas próprias trajetórias. Caminhando no fio da navalha, por vezes a obra tem um ritmo lento, se perdendo um pouco no didatismo excessivo e deixando uma estreita margem para interpretações diversas, o que enfraquece um pouco a história. Mas não chega a comprometer o resultado final, um retrato mordaz de uma guerra impossível de vencer. Qualquer semelhança com outras ações do governo dos EUA como a guerra à drogas, aliás, a qual muitos acreditam, como o general, que o problema seja a "dose" fraca da ação, não é mera coincidência.

Além de Brad Pitt, o elenco conta com Anthony Michael Hall, figura de filmes de John Hughes como Clube dos Cinco e Mulher Nota 1000, e protagonista da série O Vidente, um personagem essencial na trama, já que dá o suporte "bélico-psicológico" necessário ao protagonista. Outro ator celebrizado em um filme de Hughes, Alan Ruck (o Cameron de Curtindo a Vida Adoidado), faz Pat McKinnon, um dos funcionários do Departamento do Estado que antagoniza com o general. "Você não está aqui para vencer. Você está para limpar a bagunça", diz a certa altura. Sinceridade não falta aos personagens. Ao menos, no privado, nunca no público. Está aí o pecado capital de McMahon.



Máquina de Guerra (War Machine)
Estados Unidos (2017)
Diretor: David Michôd
Elenco: Brad Pitt, Tilda Swinton, Topher Grace, Will Poulter, Ben Kingsley, Anthony Michael Hall e Emory Cohen
Duração: 2h02
Cotação: 6/10
Disponível no Netflix


sábado, 20 de maio de 2017

Os Parecidos - filme mexicano com várias referências em um desenrolar comum

Isaac Ezban é um jovem diretor mexicano, de 31 anos, que se tornou célebre pelo filme O Incidente, feito em 2014. Um ano depois, filmou Os Parecidos (Los Parecidos), que denota seu apreço pela ficção fantástica, com diversas referências a gêneros, diretores e obras dos anos 60.

O filme se passa todo em uma estação rodoviária em 2 de outubro de 1968, dez dias depois de o México ter sediado os Jogos Olímpicos. O dia em si é mais simbólico ainda: foi quando ocorreu o Massacre de Tlatelolco, ocasião em que o governo do país comandou uma brutal repressão contra estudantes de diversas partes do país que protestavam na Plaza de las Tres Culturas. Há diversas versões para o número de vítimas daquele acontecimento, que muitos estimam entre 200 e 300 mortos, enquanto que fontes oficiais anotaram 40 mortos e 20 feridos.



Impossível não ver, ao final do filme, que tal pano de fundo não é à toa, e o filme também é uma parábola que se relaciona a isso. Mas tal referência não é essencial para ver Os Parecidos, que bebe direto na fonte de um dos principais seriados da televisão dos EUA no final dos anos 50 e parte dos 60, Twilight Zone, ou Além da Imaginação no Brasil. Desde a narração em off no início e no fim, passando pela própria natureza da narrativa, a obra de Ezban homenageia os anos 60 no próprio uso das cores, que variam de acordo com a situação dos personagens. Há também menções explícitas ao mestre do suspense Alfred Hitchcock, com a trilha sonora sendo quase um personagem da história, e uma cena que remete ao clássico Psicose.

No início, um gerente de manutenção está preso em uma estação rodoviária esperando por um ônibus que vai até a Cidade do México, atrasado já há quatro horas em função da tempestade que atinge o local. No caso, é uma remissão direta a um episódio de Twilight Zone chamado Mirror Image, em que o cenário e a situação são bem semelhantes. Mas o desenrolar da trama é outro. Ao chegarem outras pessoas no local, alguns passam a sofrer desmaios e sintomas semelhantes a ataques epiléticos. E todos começam a especular (mais que investigar) aquilo que está acontecendo.

O clima de mistério e dúvida envolve quem assiste. Como nos filmes de suspense dos anos 60/70, em que você se debruça para saber qual o papel de cada personagem na trama, o espectador vê uma história na qual não sabe de pronto quem é o protagonista e o que de fato está por trás dos acontecimentos que se sucedem. A condução da direção, junto com a trilha sonora e a atuação segura do elenco, prende a atenção todo o tempo.

Os problemas começam justamente quando a origem dos fatos é desvendada. Além de ser uma solução que fica mais para o clichê do que para a referência/homenagem, a narrativa fica arrastada, algo óbvia, e o suspense, que era a tônica até então, dá lugar a um embate enfadonho. Algumas falhas de roteiro aparecem, mas isso não é o problema principal. A questão é que o filme parece ter acabado bem antes do fim. E com uma solução longe de ser das melhores.

Ainda que haja boas sacadas e momentos interessantes, Os Parecidos peca no principal e deixa a impressão de que ver um episódio do Twilight Zone talvez seja mais produtivo que ver o filme.

Os Parecidos (Los Parecidos)
México, 2015
Direção: Isaac Ezban
Elenco: Luis Alberti, Carmen Beato e Fernando Becerril
Duração: 1h27
Cotação: 5/10
Disponível no Netflix




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