sexta-feira, 17 de julho de 2020

Ligue Djá: documentário sobre Walter Mercado resgata e humaniza trajetória do lendário astrólogo

A certa altura do filme Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado, o seu ex-agente Bill Bakula faz referência ao Brasil, dizendo que aqui o astrólogo que chegou a ter uma audiência somada de 120 milhões de pessoas era menos conhecido por seu nome e mais pelo bordão com o qual aparecia nas telas. Não à toa, o título em português incorporou o apelo que ele fazia nos antigos comerciais do sistema tele-900. Mas se no Brasil, e em boa parte do mundo, Mercado era visto como uma figura caricatural, o filme revela outros aspectos de sua trajetória. Mostra os laços afetivos que seus espectadores mantinham com ele, e também seu pioneirismo.

O diretores Cristina Constantini e Kareem Tabsch nasceram nos Estados Unidos mas são oriundos de famílias latino-americanas. Descrevem que, como muitos de suas gerações, cresceram com suas avós ou mães acompanhando as previsões astrológicas de Walter Mercado nas TVs. Depoimentos assim também aparecem no documentário, revelando a importância que personalidades como ele têm no imaginário das pessoas, provocando lembranças afetuosas e nostalgia.

Por conta disso, o filme é mais uma homenagem com "mucho, mucho amor", que tem menos a intenção de explorar possíveis contradições e polêmicas em torno de Mercado, conferindo autenticidade a uma trajetória difícil de se imaginar para um porto-riquenho nascido na zona rural na década de 1930.



O 'místico' Walter Mercado


No filme, é possível ver curiosidades a respeito do personagem, como o fato de ter "ressuscitado" um pequeno pássaro quando pequeno, fato que teria lhe dado notoriedade em sua comunidade, ocasião em que ganhou fama de curandeiro e o apelido de "Walter dos Milagres".

Também é contada a história de como ele se tornou, quase por acaso, um astrólogo que se portava com desenvoltura diante das câmeras com um visual extravagante. Um executivo o observava nas gravações de uma novela da emissora hispano-americana Telemundo falando sobre astrologia e lendo as mãos de outros colegas, quando pediu para que fizesse aquilo diante das câmeras. Vestido como um príncipe hindu, gesticulou e dissertou sobre signos durante 15 minutos, gerando grande repercussão entre os telespectadores, que passaram a entupir as linhas telefônicas da emissora.

Começava ali uma carreira que durou 50 anos. O documentário mostra como ele foi importante para autoestima da população porto-riquenha e latino-americana nos Estados Unidos de uma forma geral (o encontro com o ator e escritor Lin-Manuel Miranda é ilustrativo sobre isso), e também seu papel de pioneiro como um ícone da comunidade LGBTQI+.

Walter Mercado era reservado quanto à sua sexualidade, declarando às vezes ter realizado um "voto de castidade" na Índia, e em outras ocasiões sugerindo que este não era um aspecto importante na sua vida. Mas não há dúvida que seu visual andrógino era desafiador e inspirador, em especial no contexto à época. Talvez sua postura possa ser resumida em uma frase retratada no documentário: "Lo que se ve, no se pregunta" ("O que é óbvio não precisa ser perguntado").



O vilão da história Bill Bakula


A jornada do menino pobre que se tornou uma personalidade mundial obviamente tem seus baixos e, neste caso, o filme retrata o ex-agente Bill Bakula como uma espécie de vilão da história. A ele é reservada a responsabilidade, por exemplo, da implantação do sistema de tele-atendimento astrológico que fez sucesso em diversos países, inclusive no Brasil.

As críticas de pessoas do meio se referiam ao fato de que os profissionais seriam mal preparados e/ou que seria impossível prestar atendimento diferenciado por conta das condições de trabalho. No Brasil, havia ainda denúncias a respeito da fragilidade dos vínculos empregatícios e desrespeito à legislação trabalhista. No filme, Mercado se defende dizendo que "nunca prometeu que alguém iria ganhar na loteria", afirmando não saber de detalhes que aconteciam neste sistema, que de fato foi estruturado por Bakula.

Mas o ex-agente ganha relevância na história por conta de um contrato assinado com o astrólogo, no qual adquiria para sempre direitos sobre a obra e mesmo sobre o nome de Walter Mercado. O caso foi parar na Justiça, obrigando seu ex-agenciado a um retiro forçado longe das câmeras por seis anos, até a resolução do conflito.

Nessa oposição entre Bakula e Mercado poderia estar uma das falhas do filme, já que os papeis estão bem definidos. Mas, como já dito, não se trata da busca por algum tipo de "verdade objetiva" ou de se demonstrar uma imparcialidade envernizada, ficando patente que a direção do filme adotou um ponto de vista a partir de sua apuração.

A autenticidade do personagem


Toda a história é contada com depoimentos e também com as últimas imagens de Mercado registradas. E esse é o grande diferencial: são mais de dois anos de filmagens com ele, mostrando sua intimidade, mas também transparecendo a autenticidade com que viveu sua vida. Walter Mercado era sobretudo um artista, apresentado como alguém que viveu como desejou viver.

Ainda que se evidencie a sua decadência física e seus problemas de saúde, a narrativa consegue mostrar a energia com que, mesmo dentro de suas limitações, o protagonista se apresenta quando incorpora o personagem que despeja e recebe afeto de seus fãs. E a exposição em sua homenagem feita em Miami é o merecido gran finale de um filme delicado, que consegue envolver e emocionar.


Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado (Mucho, Mucho Amor, 2020)

Direção: Cristina Costantini, Kareem Tabsch
Elenco: Walter Mercado
Nacionalidade: Estados Unidos
Duração: 1h36
Cotação: 7/10
Disponível na Netflix

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