domingo, 13 de setembro de 2020

O dilema das redes: documentário alerta para futuro sombrio que bate à porta

Produzido originalmente para a Netflix, o documentário O dilema das redes traz um tema que ainda é restrito a alguns nichos que, há tempos, vêm discutindo os impactos das redes sociais na vida das pessoas. Sob controle de grandes corporações como o Facebook, dono da plataforma homônima, do Whatsapp e do Instagram, e o Google, que além do principal site de pesquisas do mundo tem ainda o maior serviço de e-mail (Gmail) e o YouTube, tais plataformas mudam o modo de ser e de pensar de seus usuários, que mal percebem que estão sendo manipulados.

Não é à toa que a questão da privacidade online, o rastreamento de dados e a manipulação de algoritmos não chegam a ser um assuntos discutidos de forma mais ampla. Primeiro, corporações poderosas do ponto de vista financeiro e político conseguem interditar o debate em boa parte dos países. Em segundo lugar, é um tema que tem contornos técnicos e legais que nem sempre estão ao alcance das pessoas de um modo geral. E este é o grande mérito de O dilema das redes. Consegue colocar a discussão de forma didática, sem ser raso, e destacar a sua gravidade.

Diversas mudanças têm acontecido de modo tão veloz na sociedade, comparando-se a períodos históricos anteriores, que absurdos vêm sendo naturalizados e/ou relativizados sem que as pessoas se deem conta. E as redes sociais têm um papel importante nesse contexto. Seja porque condicionam as pessoas a desenvolverem uma espécie de dependência em relação a elas, ou devido ao fato de serem um campo ideal para manipulações que interferem no dia a dia e mesmo no cenário político de países inteiros, desde alguns nos quais o Facebook é praticamente sinônimo de internet (como era o caso do Brasil, em 2017) até outros em que redes como o Whatsapp se tornaram dominantes (novamente, o Brasil serve de exemplo).

O filme traz depoimentos de pessoas que participaram do processo de criação de algumas dessas plataformas e de suas principais ferramentas, o que traz credibilidade às informações e reflexões construídas. De uma forma geral, boa parte dos testemunhos dá conta até de boas intenções por parte das pessoas envolvidas nos projetos iniciais. Ideias de envolvimento, agregação de pessoas, engajamento e mesmo estímulo a "sentimentos bons", como se relata sobre a ideia original do "curtir" no Facebook (embora não seja muito crível conceber "boas intenções" na elaboração desse mecanismo). Mas o fato é que tais empresas têm um objetivo evidente: o lucro. E o produto a ser vendido é você.


Manipulação de dados e desejos

Embora haja escândalos graves envolvendo a venda de dados de usuários do Facebook para uso comercial e político, a utilização das informações que deveriam ser privadas e são colhidas sem que as pessoa saibam se volta prioritariamente a anunciantes destas plataformas. A promessa da publicidade veiculada em veículos como TV, rádio e impressos antes era "descobrir" ou estimular desejos e vontades do público, levando-o a consumir. Mas, agora, graças aos avanços tecnológicos e uso intensivo das redes e aplicativos, as possibilidades nesse campo se ampliaram de uma forma incrível.

Estas plataformas conseguem traçar o perfil de todos que as usam, construindo modelos com base em algoritmos que são capazes de prever determinado tipo de comportamento conforme a situação. E usam isso não só para vender aquilo que "você precisa" em determinado contexto ou momento, mas também para fazer com que seu tempo de permanência seja cada vez maior diante da tela do celular ou do computador.

O filme mostra o quão pernicioso é isso, já que o efeito dessa manipulação de dados é duplo: as companhias buscam oferecer aquilo que a pessoa sempre quer, mas também atuam para que ela queira o mesmo tipo de coisa. Sempre. É um condicionamento que pretende mantê-la no mesmo lugar, vendo continuamente o mesmo tipo de conteúdo, restrita a uma bolha onde circula um tipo de informação padrão, que se retroalimenta.

Com o usuário entrando sempre em contato com o mesmo tipo de estímulo e recebendo a "recompensa", cria-se uma zona de conforto onde qualquer interferência externa ou ruído toma forma de ameaça. Ou seja, nesse cenário a lógica do inimigo, explorada por diversas forças políticas, ganha força. O questionamento é visto como afronta e o diálogo chega ao limite do impossível.

As redes e a desinformação como arma

É o contexto que facilita a circulação das chamadas fake news, decisivas em disputas eleitorais e que trazem diversos danos em outras áreas como, por exemplo, na saúde pública. Movimentos antivacina ganham corpo e a desinformação causa mortes em meio à pandemia da covid-19, quando passam a circular desde receitas caseiras que supostamente previnem ou curam a doença a teorias que desmentem sua própria existência.

Por mais que, em alguns países, como os Estados Unidos, tenha havido tentativas de "enquadramento" das grandes companhias para que ajam contra as fake news, o filme mostra o porquê disso não se concretizar. As gigantes da comunicação ganham com a desinformação, já que notícias falsas circulam com muito mais rapidez do que as reais, gerando audiência, engajamento, cliques e dinheiro. Além disso, a inteligência artificial dos algoritmos simplesmente não sabe distinguir entre algo real ou não.

Além dos depoimentos de pessoas que participaram e participam da indústria de tecnologia, há ainda especialistas de outras áreas e uma narrativa fictícia contada para ilustrar os efeitos das redes e de seus mecanismos no cotidiano. Aqui há também o ponto fraco do filme. Não são ouvidos acadêmicos e ativistas de movimentos com o do software livre e outros que defendem a democratização da comunicação no mundo que já alertavam para as perspectivas sombrias das redes sociais e de ferramentas e softwares proprietários.

A narrativa bem construída, apesar de alertar de forma incisiva para as mudanças que já ocorrem, levando o mundo a uma espécie de distopia onde o pior de cada um pode ser despertado, também aponta para possíveis saídas, como a regulação das atividades das gigantes do setor para que se estabeleçam, normativamente, limites éticos à sua atuação. Mas faltam, mais uma vez, já que se reconhece a busca do lucro como motor do sistema, as saídas não-capitalistas.

Também fica patente que nenhuma mudança vai acontecer, de acordo com o próprio documentário, sem uma pressão forte da opinião pública, o que exige obviamente conhecimento das pessoas sobre o quanto seus direitos e suas vidas estão sendo ameaçados. Como diz Jason Lanier, autor do livro Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, que aparece no filme, mesmo que não seja possível promover uma saída em massa de forma imediata das pessoas das redes, como sugere sua obra-manifesto, é possível fazer com que atentem a essa questão, provocando a reflexão e mesmo a mudança de atitude de alguns. Reconhecer o problema é um primeiro passo.

O dilema das redes (The social dilemma)
Direção: Jeff Orlowski
Duração: 89 minutos
Disponível na Netflix


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