sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Pranto maldito: terror colombiano explora lenda local. E não convence

Não é muito comum nos serviços de streaming do Brasil termos acesso a filmes produzidos na Colômbia, ainda mais de terror. Por isso, mas não só, Pranto maldito (Llanto maldito) atrai a atenção de quem olha o catálogo da HBO Max. O trailer promete uma história tensa, um ambiente sombrio e um horror que se inspira mais no clima e na história do que em efeitos especiais.

O "pranto" do título se refere na verdade a uma lenda comum em muitos países latino-americanos e que na Colômbia se conhece por Tarumama. As histórias giram em torno do espírito de uma mulher que, conforme a versão, ou teria ensandecido e afogado os próprios filhos ou teria dado à luz e, exausta pelo parto, deixado o rio levar seu filho. É esta alma perturbada que vai interferir na vida de Sara e Óscar, e de seus dois filhos, Alicia e Tomás. 

O casal urbano resolve alugar um chalé em um lugar afastado para tentar reatar laços e manter seu casamento, após a experiência traumática de Sara, que teve um filho natimorto. Quando são apresentados pela responsável ao local em que vão ficar, ficam sabendo que os donos do imóvel também tiveram um filho, ainda criança, morto em um acidente em um rio próximo. 

(Aliás, algo bastante normal um chalé que tem fotos da família dos donos na parede e a pessoa que o aluga contar voluntariamente que o filho dos proprietários morreu nas proximidades...)

A história segue mostrando os conflitos do casal e o sofrimento dos filhos com as desavenças dos pais, roteiro que, sem nenhuma ação sobrenatural, afeta infelizmente famílias ao redor do mundo. Não bastasse isso, os integrantes do clã, um a um, começam a ver uma mulher que chora durante a noite.

Neste ponto, os problemas da família se agravam. E os do filme também.


Spoilers daqui em diante



Aos poucos, a situação vai perdendo a verossimilhança não por conta da interferência espiritual, mas sim pela própria reação dos personagens. Obviamente que todo filme de terror precisa de um comportamento algo anormal, descuidado ou cético de algum ou alguns personagens para que haja a tensão e, enfim, o tal horror. Mas a resistência do pai em sair dali após o desconforto geral da família é algo que beira o inacreditável, inclusive diante daquilo que já se conhece de Óscar até então, que não tem um perfil exatamente irrascível, ainda mais com os filhos.

São diversos clichês em sequência, com uma nítida dificuldade na interação entre os personagens e a própria fluidez da história. A certa altura, o espectador é brindado com, talvez, a única referência (fora a lenda, que não é explicitada ou citada no filme) à Colômbia: o sancocho, prato típico também de outros países. E a cena em que a família é convidada para degustar tal cozido é quase deslocada dentro do roteiro, fazendo pouco sentido na trama.

Além disso, na única vez em que aparece o tal rio, o que poderia ser um elemento relevante na composição da história, trata-se de um pequeno riacho sem profundidade, cujo grande perigo são algumas pedras em que se pode escorregar. Trivial e nem um pouco assustador.

O filme é tecnicamente bem feito, com uma fotografia que consegue dar uma atmosfera sombria à trama. Ainda assim, poderia facilmente ser uma película confundida com alguma produção estadunidense. Esta falta de identidade, além da ausência de originalidade, poderia ser compensadas com um ritmo que prendesse o espectador, o que não ocorre.

Se não chega a ser um desastre, Pranto maldito entrega bem menos do que poderia, ainda mais explorando um contexto que, pelo drama em si, já possui sua própria carga de horror. 


Pranto maldito (Llanto maldito)


Direção: Andres Beltran

Elenco: Paula Castaño, Andres Londono, Carolina Ribón, Alanna De La Rossa e Jerónimo Barón

Nacionalidade: Colômbia


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Bingo Hell: filme parte de premissa boa, mas se perde no meio


sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Bingo Hell: filme parte de premissa boa, mas se perde no meio

A especulação imobiliária a a gentrificação, que expulsa moradores de uma determinada área para abrigar pessoas com maior poder aquisitivo, têm sido temas constantes de obras tão distintas como as séries Billions e Unbreakable Kimmy Schmidt, chegando até filmes como o brasileiro Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. É uma questão árida, muitas vezes ignorada por parte da mídia (que recebe polpudos recurso vindos da publicidade do setor imobiliário), mas que, de fato, aterroriza diversas pessoas que se veem impotentes, muitas vezes de uma hora para outra, diante do poder econômico. Adequado para um filme de terror, como Bingo Hell.

Quando a sanha especulativa atinge classe mais abastadas, como moradores do bairro de Pinheiros, em São Paulo, as vozes conseguem até ser ouvidas. Em geral isso não acontece. é o caso da pequena cidade de Oak Springs, que sofre com a gentrificação e a chegada de novos e abastados moradores. Mas há resistência de alguns, encarnada em Lupita (Adriana Barraza), que tenta, junto com outras pessoas que residem há décadas no local, ainda manter o espírito de comunidade e permanecer ali.


O salão de bingo (bingo hall, daí o trocadilho do título) é não só o local de encontro dos resistentes, mas também onde se articulam os laços de solidariedade e ajuda. O cenário, contudo, começa a mudar quando Mario (David Jensen), o dono do imóvel desaparece e no lugar do tradicional salão é aberto um outro bingo, com intenções e ambições bem distintas.

Embora haja uma morte logo no início do filme, até a primeira sessão do novo bingo o filme é marcado pelo humor. Estamos falando de uma heroína improvável para um filme do gênero, o que poderia ser uma vantagem. A interação entre os atores também flui bem até o momento crucial da estreia do chamado Mr. Big.

A metáfora se perde em Bingo Hell (contém spoilers)

Mr. Big é o nome da nova casa de entretenimento, como é também a alcunha do personagem que se apresenta como seu dono. A metáfora não é sutil: ele seria a própria encarnação do mal, representando no caso o poder da sedução do dinheiro. Os vencedores do bingo em sua casa receberiam o devido castigo.

E aí o o problema aparece. Os personagens cedem ao seu "desejo" por mais dinheiro, mas desconsidera-se totalmente o contexto de cada uma. Necessidades econômicas de quem tem pouco ou quase nada e frustrações por diversos motivos são igualados na esteira do que seria uma "fraqueza" de cada um que caiu. Desenha-se um problema de ordem moral para cada um, quando se trata de uma questão estrutural.

Em outros filmes, como os citados acima, e na própria vida real testemunhada por pessoas que estão envoltas em episódios nos quais ousam contrariar interesses da indústria imobiliária, a receita do terror se faz com ameaças diretas e indiretas, chantagens e violência psicológica e até física. Em Bingo Hell, a história sugere que se trata de uma questão do personagem não ceder à cobiça, quando o buraco é mais embaixo.

Além disso, o filme desrespeita algo básico em qualquer filme de terror. O vilão, seja ele humano, inumano, espírito, alienígena etc, tem métodos para agir. Muitas vezes a a graça do filme é descobrir a tática e a estratégia para então saber como derrotá-lo. O Mr. Big age de forma quase aleatória, não se sabe o quão carnal é. E a solução para eliminá-lo é pueril demais para um ser sobrenatural. Ele não é exatamente um "material boy" (perdão, Madonna) para ter o fim que teve...

Se não for levado nem um pouco a série, Bingo Hell ainda pode fazer rir com o bom elenco que tem. Mas assista com expectativa baixa.

Bingo Hell (2021)

Direção: Gigi Saul Guerrero

Elenco: Adriana Barraza, L. Scott Caldwell, Joshua Caleb Johnson, Richard Brake

Duração: 1h25

Nacionalidade: Estados Unidos

Disponível no Amazon Prime Video


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2020 Nunca Mais: falso documentário traz retrospectiva de um ano surreal

domingo, 27 de dezembro de 2020

2020 Nunca Mais: falso documentário traz retrospectiva de um ano surreal

Logo no início de 2020 Nunca Mais (Death to 2020), o jornalista vivido por Samuel L. Jackson questiona, sobre a intenção dos realizadores de fazerem uma retrospectiva de 2020: "por que vocês querem fazer isso?".

Em uma entrevista concedida em maio, o britânico Charlie Brooker, responsável pela produção da série Black Mirror, havia dito que não estava produzindo nenhum episódio porque não sabia se haveria "estômago para histórias sobre sociedades desmoronando". "Estou ansioso para revisitar meu conjunto de habilidades cômicas, então tenho escrito roteiros com o objetivo de me fazer rir."

O resultado dessa intenção de Brooker é o falso documentário que entrou no ar pela Netflix neste domingo. Desnecessário dizer que o ano que termina na próxima sexta-feira foi tão atípico que tornou palpáveis narrativas que pertenciam à esfera da ficção. Não só pela pandemia que atingiu o mundo de formas distintas, mas por acontecimentos como a corrida eleitoral nos Estados Unidos e o próprio comportamento irresponsável de líderes mundiais em relação à covid-19.

Nesse contexto, o filme faz com que lembremos de fatos graves, ocorridos em um período pré-pandemia que parecem ter acontecido em outra vida, como a série de incêndios na Austrália iniciada em janeiro, que matou ou desabrigou 3 bilhões de animais no país. Ou o assassinato, por parte do governo estadunidense, do general iraniano Qasem Suleimani, elevando a tensão geopolítica a um nível elevado e trazendo ao mundo o medo de um conflito de terríveis proporções.

Mas é a pandemia quem domina o falso documentário. Não apenas pelo que causou, mas pela reação de governos a ela. E aí, obviamente, entram como alvo presidentes que desprezaram a pandemia, como Donald Trump, alvo principal do filme, e Boris Johnson. O brasileiro Jair Bolsonaro também aparece rapidamente como exemplo, ao lado do presidente dos EUA, de líder que não toma cuidados para se prevenir contra o contágio pela covid-19.

Entre personagens reais, surgem outros ficcionais, mas nem tanto, como o mega-empresário e o influenciador digital que querem lucrar com a pandemia, fingindo "se importar", até o historiador que não consegue distinguir ficção e realidade.

Aliás, essa falta de distinção, representada pelo negacionismo encarnado em uma "cidadã comum" e, na sua forma mais perversa na congressista vivida por Lisa Kudrow, é um dos elementos centrais da obra, já que sua dimensão alcançou hoje um status no qual afeta a vida das pessoas mas pode determinar até mesmo sua morte.

2020 Nunca Mais sem o fio da meada

Quase toda retrospectiva jornalística é, na prática, uma colcha de retalhos, e o filme não escapa de ser uma salada. Mas, como obra ficcional, perde força justamente por não dar algum sentido à sequência de fatos.

Talvez o negacionismo e o predomínio das fake news poderiam ser a linha que une os fatos retratados no filme. Afinal, ela está presente não só no enfrentamento da pandemia e nos boatos sobre a vacinação, como também na negação do racismo, tema visitado a partir da explosão dos protestos do Black Lives Matters em nível mundial após o assassinato de George Floyd. e também na mentira como estratégia de luta política, algo que cresce e alimenta o anti-cientificismo. 

O filme perde essa oportunidade e os personagens, alguns que parecem fazer pouco sentido no conjunto, também não dão essa costura. Além disso, trata-se essencialmente um filme anglo-saxão, já que centra suas críticas em Trump e Johnson, ignorando tantas outras personalidades da política mundial que se destacaram, positiva (e em especial negativamente) na pandemia.

Como comédia, embora possa suscitar risadas, comete um pecado mortal que já vitimou outros filmes e séries. Muitas das piadas são variações do mesmo tema. Quando aborda as eleições nos Estados Unidos, tema, aliás sobredimensionado, há uma série delas sobre a idade de Joe Biden. Dá vontade de dizer, "ok, entendi que ele é idoso, mais alguma coisa além disso?".

Apesar da intenção de Brooker e do elenco valioso, que consegue dar um tempero ao filme em muitos momentos, o roteiro e mesmo o cenário atual ainda não permitam que se possa olhar para 2020 de uma forma cômica.


2020 Nunca Mais (Death to 2020)

Direção: Charlie Brooker e Al Campbell

Elenco: Samuel L. Jackson, Hugh Grant, Cristin Milioti e Lisa Kudrow

Duração: 110 minutos

Nacionalidade: Estados Unidos


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O dilema das redes: documentário alerta para futuro sombrio que bate à porta

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terça-feira, 3 de novembro de 2020

O que ficou para trás (His House), na Netflix: quando a realidade é o verdadeiro horror

"Depois de tudo que passamos, depois de tudo que vimos que os homens podem fazer, acha que barulhos à noite me assustam? Acha que posso ter medo de fantasmas?" O questionamento da personagem Rial Majur (Wunmi Mosaku) a seu marido, Bol (Sope Dirisu), ambos protagonistas do filme O que ficou para trás (His House), produção que estreou na Netflix em outubro, dá um pouco a dimensão de cenários que seriam típicos de filmes de horror mas que se banalizaram de tal forma que não chegam a espantar a audiência dos noticiários. Ainda que sejam tragédias difíceis até de se descrever para quem as vive.

Boa parte destas histórias de terror poderiam ser contados pelos refugiados, invisibilizados, mas numerosos como nunca antes no planeta. Segundo dados dados da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), foram 79,5 milhões de pessoas deslocadas forçosamente de suas casas em 2019, o equivalente a 1% da população mundial. Um dos países que está na lista entre os que mais provocam deslocamentos de pessoas, tanto no plano interno quanto no externo, é também o mais novo país do mundo, o Sudão do Sul.

Após conquistar a independência em 2011, dois anos depois mergulhou em uma violenta guerra civil, e segundo a ONU são 2,3 milhões de sul-sudaneses vivendo em outros países, principalmente vizinhos, e 1,9 milhão que tiveram que sair de suas casas mas permanecem dentro das fronteiras. O filme O que ficou para trás conta justamente a história de dois refugiados que saem do país em busca da sobrevivência, indo parar na Inglaterra.

filme His House



No país europeu, após passarem um tempo em um centro de detenção depois de uma travessia marítima que vitimou diversas pessoas, entre elas sua filha, conseguem algo raro para poucos migrantes nesta situação. São aceitos em um programa governamental que condiciona sua permanência no país a uma espécie de "manual de boa conduta", recebendo auxílio por parte do governo e uma casa para morar.

Após chegarem na casa, em um bairro operário no qual tomam contato com o preconceito quase de forma instantânea, o comportamento do casal passa a ser distinto. Enquanto Bol busca se adaptar e abandonar inclusive hábitos da sua cultura, Rial se mostra incomodada e não aceita, demonstrando isso a seu parceiro. Além disso, aparições vinculadas à história dos dois começam a surgir na casa, aumentando o desconforto e o estranhamento.

Remi Weeks e a assimilação


A casa de cada um costuma ser o refúgio e o lugar seguro. E mudanças exigem sempre capacidade e vontade de adaptação. Não à toa que lares mal-assombrados são um grande filão do cinema de horror, já que se relacionam a medos e insegurança comuns a quase todos. Mas, no caso, de um refugiado, que perde o direito não só ao lar como de seu próprio chão, as assombrações tomam outro vulto.

O diretor do filme Remi Weeks, que também é autor do roteiro, falou em entrevista que o longa questiona justamente o quanto uma pessoa pode abrir mão para se adaptar a uma nova realidade ou buscar um recomeço. "Tendo crescido em Londres como uma pessoa negra, uma conversa que tivemos em nossa comunidade foi sobre assimilação, e quanto de você você desiste ou deixa de ceder. Esse é o ponto crucial da história", disse ele.

Esse conflito entre aquilo que os personagens, na verdade, não deixaram para trás, e sua nova realidade faz da casa um terceiro personagem que interage com eles durante toda a história. Os fantasmas que ali aparecem simbolizam toda a vivência que é impossível de ser esquecida pelos protagonistas, incluindo uma virada na trama que torna ainda mais palpável o tamanho de suas tragédias.

Entre a perturbação da consciência de um Raskolnikóv de Crime e Castigo, o próprio apego às origens e um outro horror diante do desconhecido, Weeks consegue manter a tensão em um terror que incomoda o espectador o tempo todo, mas mantém sua atenção e é capaz de despertar empatia mesmo perante ações pra lá de questionáveis. No horror que é produzido e mantido pela indiferença alheia, ninguém escapa.   



O que ficou para trás (His house)

Direção: Remi Weeks

Elenco: Wunmi Mosaku, Sope Dirisu, Matt Smith, Javier Botet, Cornell John, Emily Taaffe e Malaika Abigaba

Duração: 93 minutos

Nacionalidade: Reino Unido

Disponível na Netflix


domingo, 13 de setembro de 2020

O dilema das redes: documentário alerta para futuro sombrio que bate à porta

Produzido originalmente para a Netflix, o documentário O dilema das redes traz um tema que ainda é restrito a alguns nichos que, há tempos, vêm discutindo os impactos das redes sociais na vida das pessoas. Sob controle de grandes corporações como o Facebook, dono da plataforma homônima, do Whatsapp e do Instagram, e o Google, que além do principal site de pesquisas do mundo tem ainda o maior serviço de e-mail (Gmail) e o YouTube, tais plataformas mudam o modo de ser e de pensar de seus usuários, que mal percebem que estão sendo manipulados.

Não é à toa que a questão da privacidade online, o rastreamento de dados e a manipulação de algoritmos não chegam a ser um assuntos discutidos de forma mais ampla. Primeiro, corporações poderosas do ponto de vista financeiro e político conseguem interditar o debate em boa parte dos países. Em segundo lugar, é um tema que tem contornos técnicos e legais que nem sempre estão ao alcance das pessoas de um modo geral. E este é o grande mérito de O dilema das redes. Consegue colocar a discussão de forma didática, sem ser raso, e destacar a sua gravidade.

Diversas mudanças têm acontecido de modo tão veloz na sociedade, comparando-se a períodos históricos anteriores, que absurdos vêm sendo naturalizados e/ou relativizados sem que as pessoas se deem conta. E as redes sociais têm um papel importante nesse contexto. Seja porque condicionam as pessoas a desenvolverem uma espécie de dependência em relação a elas, ou devido ao fato de serem um campo ideal para manipulações que interferem no dia a dia e mesmo no cenário político de países inteiros, desde alguns nos quais o Facebook é praticamente sinônimo de internet (como era o caso do Brasil, em 2017) até outros em que redes como o Whatsapp se tornaram dominantes (novamente, o Brasil serve de exemplo).

O filme traz depoimentos de pessoas que participaram do processo de criação de algumas dessas plataformas e de suas principais ferramentas, o que traz credibilidade às informações e reflexões construídas. De uma forma geral, boa parte dos testemunhos dá conta até de boas intenções por parte das pessoas envolvidas nos projetos iniciais. Ideias de envolvimento, agregação de pessoas, engajamento e mesmo estímulo a "sentimentos bons", como se relata sobre a ideia original do "curtir" no Facebook (embora não seja muito crível conceber "boas intenções" na elaboração desse mecanismo). Mas o fato é que tais empresas têm um objetivo evidente: o lucro. E o produto a ser vendido é você.


Manipulação de dados e desejos

Embora haja escândalos graves envolvendo a venda de dados de usuários do Facebook para uso comercial e político, a utilização das informações que deveriam ser privadas e são colhidas sem que as pessoa saibam se volta prioritariamente a anunciantes destas plataformas. A promessa da publicidade veiculada em veículos como TV, rádio e impressos antes era "descobrir" ou estimular desejos e vontades do público, levando-o a consumir. Mas, agora, graças aos avanços tecnológicos e uso intensivo das redes e aplicativos, as possibilidades nesse campo se ampliaram de uma forma incrível.

Estas plataformas conseguem traçar o perfil de todos que as usam, construindo modelos com base em algoritmos que são capazes de prever determinado tipo de comportamento conforme a situação. E usam isso não só para vender aquilo que "você precisa" em determinado contexto ou momento, mas também para fazer com que seu tempo de permanência seja cada vez maior diante da tela do celular ou do computador.

O filme mostra o quão pernicioso é isso, já que o efeito dessa manipulação de dados é duplo: as companhias buscam oferecer aquilo que a pessoa sempre quer, mas também atuam para que ela queira o mesmo tipo de coisa. Sempre. É um condicionamento que pretende mantê-la no mesmo lugar, vendo continuamente o mesmo tipo de conteúdo, restrita a uma bolha onde circula um tipo de informação padrão, que se retroalimenta.

Com o usuário entrando sempre em contato com o mesmo tipo de estímulo e recebendo a "recompensa", cria-se uma zona de conforto onde qualquer interferência externa ou ruído toma forma de ameaça. Ou seja, nesse cenário a lógica do inimigo, explorada por diversas forças políticas, ganha força. O questionamento é visto como afronta e o diálogo chega ao limite do impossível.

As redes e a desinformação como arma

É o contexto que facilita a circulação das chamadas fake news, decisivas em disputas eleitorais e que trazem diversos danos em outras áreas como, por exemplo, na saúde pública. Movimentos antivacina ganham corpo e a desinformação causa mortes em meio à pandemia da covid-19, quando passam a circular desde receitas caseiras que supostamente previnem ou curam a doença a teorias que desmentem sua própria existência.

Por mais que, em alguns países, como os Estados Unidos, tenha havido tentativas de "enquadramento" das grandes companhias para que ajam contra as fake news, o filme mostra o porquê disso não se concretizar. As gigantes da comunicação ganham com a desinformação, já que notícias falsas circulam com muito mais rapidez do que as reais, gerando audiência, engajamento, cliques e dinheiro. Além disso, a inteligência artificial dos algoritmos simplesmente não sabe distinguir entre algo real ou não.

Além dos depoimentos de pessoas que participaram e participam da indústria de tecnologia, há ainda especialistas de outras áreas e uma narrativa fictícia contada para ilustrar os efeitos das redes e de seus mecanismos no cotidiano. Aqui há também o ponto fraco do filme. Não são ouvidos acadêmicos e ativistas de movimentos com o do software livre e outros que defendem a democratização da comunicação no mundo que já alertavam para as perspectivas sombrias das redes sociais e de ferramentas e softwares proprietários.

A narrativa bem construída, apesar de alertar de forma incisiva para as mudanças que já ocorrem, levando o mundo a uma espécie de distopia onde o pior de cada um pode ser despertado, também aponta para possíveis saídas, como a regulação das atividades das gigantes do setor para que se estabeleçam, normativamente, limites éticos à sua atuação. Mas faltam, mais uma vez, já que se reconhece a busca do lucro como motor do sistema, as saídas não-capitalistas.

Também fica patente que nenhuma mudança vai acontecer, de acordo com o próprio documentário, sem uma pressão forte da opinião pública, o que exige obviamente conhecimento das pessoas sobre o quanto seus direitos e suas vidas estão sendo ameaçados. Como diz Jason Lanier, autor do livro Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, que aparece no filme, mesmo que não seja possível promover uma saída em massa de forma imediata das pessoas das redes, como sugere sua obra-manifesto, é possível fazer com que atentem a essa questão, provocando a reflexão e mesmo a mudança de atitude de alguns. Reconhecer o problema é um primeiro passo.

O dilema das redes (The social dilemma)
Direção: Jeff Orlowski
Duração: 89 minutos
Disponível na Netflix


sábado, 12 de setembro de 2020

Cobra Kai na Netflix: sucesso que se justifica


Na sitcom How I Met Your Mother, os amigos do personagem Barney Stinson preparam uma despedida de solteiro para ele, realizando uma lista de desejos, que inclui conhecer o protagonista do filme Karate Kid, de 1984. Como se trata de promover inúmeras "pegadinhas" com o noivo, eles trazem Ralph Machio, que faz Daniel Larusso no filme. Barney rejeita o presente, afirmando que o "verdadeiro" Karate Kid era Johnny Lawrence (William Zabka).

O vídeo com a sequência do seriado segue abaixo.


Muitos entenderam essa passagem como uma espécie de "profecia" ou no mínimo algo que inspirou on Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald, os criadores do seriado Cobra Kai. Se o filme original não deixava dúvidas quanto ao protagonismo de Daniel, no melhor estilo mocinho contra vilão, o seriado começa priorizando a história de seu adversário. A época é 2018, 34 anos depois dos dois adolescentes terem se enfrentado em um torneio regional de caratê sub-18.

Enquanto Larusso é agora um bem sucedido dono de uma concessionária de automóveis, Lawrence vive de bicos. Ambos ainda tem relação com o passado adolescente a a fatídica luta. Mas, ao contrário do dualismo que estabelecia bem o papel de cada um na película original, agora há uma zona cinzenta em que nenhum dos dois é tão herói ou vilão assim.

Assim como Better Call Saul resgata as origens e todo o processo que levou o advogado de Walter White a ser o que era em Breaking Bad, o passado de Lawrence também é escrutinado, mostrando que o "menino rico" da película original tem uma trajetória bem mais acidentada do que poderia parecer. Obviamente que essa construção passa longe de ser brilhante como no spin off de Vince Gillian, e a proposta nem é essa: a narrativa é contada de forma mais singela, com referências a filme de artes marciais e mesmo, em alguns momentos, a soap operas ou novelas.

Já Larusso tem uma face esnobe e por vezes arrogante ali evidenciada. A filosofia de seu mentor, "senhor" Miyagi, já morto, inspira sua busca pessoal por equilíbrio, mas também um suposto sentimento de superioridade moral mais pretensioso do que real em muitas ocasiões. É também vendedor também de sua própria imagem, ainda associada ao caratê e ao golpe célebre com que venceu Lawrence.

Nostalgia e ação

Dentro dessa narrativa fluida em que um ou outro protagonista vai merecer simpatia e seu avesso, há também o enredo que envolve os dois filho da dupla e Miguel, que vai se tornar o primeiro aluno no dojo ressuscitado Cobra Kai. Esta subtrama remete diretamente ao filme de 1984, com praticamente os mesmos elementos, a disputa entre representantes de filosofias distintas de caratê (ainda que as diferenças pareçam mais tênues no decorrer da história), jovens em busca de identidade e um triângulo amoroso. Além de uma pitada de Romeu e Julieta...

Se você ainda não assistiu à série, deve estar achando que ela tem muitos clichês. E tem. O roteiro, como já dito, é simples e às vezes peca por aquela inverossimilhança que o espectador logo pensa: "ah, não é possível". Mas isso acaba sendo minimizado pela agilidade da direção, que garante ação durante todo o tempo. E aqui não se trata só da ação entendida em seu conceito clássico que, aqui, seriam as cenas de luta, mas sim a mudança quase constante de situações que explora o tempo todo o limite dos personagens.

Assim, quem acompanha a história está sempre envolvido com algo não resolvido, torcendo para um ou outro protagonista ou desejando a solução de um mal entendido. Ainda conta a favor, para os mais velhos, o fator nostalgia em relação aos anos 1980, o que ajudou em produções como Stranger Things, mas não salvou desastres como That '80s Show. E para os mais novos, a trama dos filhos/pupilos também envolve, como é fácil notar pelas redes sociais.

Cobra Kai prende a atenção, consegue entreter e pode até gerar discussões além da história, como o papel da masculinidade no mundo atual, a dificuldade de adaptação de quem ainda funciona no "modo antigo" ou mesmo o efeito da crise da meia-idade para homens acostumados a um determinado figurino cultural (sobre isso, tem o bom filme espanhol O que os homens falam). 

A terceira temporada de Cobra Kai

As duas primeiras temporadas de Cobra Kai exibidas na Netflix foram produzidas originalmente para o YouTube Premium. Fez algum sucesso lá fora, mais em termos de apreciação "cult" do que de massa, mas chegou com força aqui há pouco tempo, a partir da chegada no catálogo do serviço de streaming mais acessado no país.

Sobre a terceira temporada, segue o que já se sabe (contém spoilers).

O final da segunda temporada deixa uma perspectiva nebulosa para todos os principais personagens, em especial para Miguel (Xolo Maridueña), principal e primeiro aluno de Lawrence que está internado após sofrer uma queda durante uma briga com Robby, aluno de LaRusso e filho de seu antagonista. E agora o dojo Cobra Kai está sob comando de seu fundador, o vilão John Kreese (Martin Kove).

Sobre o que vem a seguir, a Netflix divulgou este trailer:


Pelo teaser, pouco se revela a respeito da estreia da terceira temporada, em 2021, e mesmo da data do lançamento. Mas é possível, junto com informações de pós-produção, ver Daniel Larusso indo para Okinawa, lugar onde ele já foi no filme Karate Kid 2. Desta vez, as filmagens foram de fato realizadas no Japão, já que à época da sequência do original as cenas foram rodadas nas ilha de Oahu, no Hawai.

Pelo desenrolar da trama, é possível uma reaproximação, dentro do contexto de idas e vindas das duas primeiras temporadas, entre Larusso e Lawrence, contra Kreese. Mas daí vamos partir para a especulação. Aguardemos as cenas do próximo capítulo.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O que os homens falam (Una pistola en cada mano) - a masculinidade desnuda

Embora seja centrado em oito personagens masculinos que estão próximos à chamada meia-idade, o filme espanhol O que os homens falam (Una pistola em cada mano), dirigido pelo catalão Cesc Gay, retrata inseguranças, vícios e comportamentos que caracterizam muitas vezes os homens de uma forma geral, e não apenas aqueles que estão nessa faixa etária.

filme espanhol O que os homens falam, na Amazon
Cena do filme O que os homens falam


São cinco histórias contadas com um humor ácido, mas não caricatural, impressão reforçada pelo bom elenco que sustenta o filme. Provavelmente muitos homens vão se identificar (às vezes de forma envergonhada) com os sentimentos e situações e as mulheres também vão ver ali características de pessoas conhecidas, moldadas em maior ou menor grau pela lógica do patriarcado. Que as prejudica e oprime, mas que também faz com que os homens busquem sempre os lugares que parecem a eles como pré-definidos.

Assim, em quase todas as histórias paira o embotamento emocional, a dificuldade de se expressar o que se sente ou mesmo aquilo que se quer. Só quando existe a interação com mulheres (no sentido de "conquistá-las"), ocasião em que em tese estariam exercendo seu papel, se sentem menos contidos. Contudo, as reações das personagens femininas os traz para uma nova realidade.

Esse é um dos eixos do filme. Assim como a meia idade é uma espécie de transição, o entendimento da figura masculina em uma sociedade na qual o empoderamento feminino aparece a muitos não como uma condição fundamental para uma sociedade mais igualitária, e sim como ameaça, faz com que os personagens demorem a se situar nessa nova ordem. Isso se reflete na história em que um homem tenta reatar com sua ex-mulher e também no episódio em que o funcionário de uma empresa tenta sair com uma colega de trabalho. Este último, aliás, talvez seja o mais irregular do filme, por conta da obviedade e do excessivo didatismo que destoa do restante.

O episódio em que o personagem de Ricardo Darín, que sofre por sua esposa ter um amante, tem um encontro fortuito com um homem (Luis Tosar) em um parque talvez seja o mais representativo do problema da empatia e da dificuldade em se lidar com a masculinidade da forma como a sociedade espera. Os diálogos são ricos e a tensão/expectativa que se tem ao assistir remete ao primeiro episódio, também um encontro entre dois velhos conhecidos, mas em outro contexto.



O último episódio tem dois casais que vão a uma festa e os parceiros, trocados, se encontram casualmente. De novo se evidenciam os limites da comunicação por parte dos homens e o quão difícil é enfrentar questões relativas ao estereótipo do "macho".

A composição do filme e mesmo a transição dos episódios até chegar ao final é delicada e bem trabalhada por Cesc Gay e o resultado é um filme que consegue ser incômodo aos homens (que bom, pois é isso que se espera), estimulando a reflexão sobre a necessidade de se elaborar novos tipos de identidades e relações. As interpretações chamam a atenção, até por conta da evocação à teatralidade, e os diálogos são instigantes, sem artificialismos comuns quando se tratam de temáticas similares. Em tempos como os que vivemos, obra essencial.

O que os homens falam 
(Una pistola en cada mano - 2012)
Diretor: Cesc Gay
Elenco: Ricardo Darín, Luis Tosar, Javier Cámara, Leonor Watling, Eduardo Noriega, Leonardo Sbaraglia, Candela Peña, Eduard Fernández, Alberto San Juan, Cayetana Guillén Cuervo, Jordi Mollà, Clara Segura, Silvia Abril
Nacionalidade: Espanha
Duração: 1h35
Cotação: 8/10
Disponível na Amazon

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